Quase todos os dias me cruzo com um deles. Umas vezes é ele que regressa com ar apagado. Outras vez é ela que sai de casa para ir ao pão, ou ao supermercado, imagino eu, sei lá da vida da senhora. Tem dias em que coincidimos os três e surge a troca de olhares, o aceno de cabeça ou o circunstancial cumprimento entre vizinhos, cujas vidas não têm por onde se entrelaçar mas que se tocam por obrigação geográfica, por força de coincidirem em latitude e longitude. Que estranho é partilharmos as coordenadas GPS mas não temos por onde coordenar as nossas almas.
Quase todos os dias os ouço. As suas vozes alteradas e as palavras ásperas atravessam as paredes que nos separam e invadem a quietude da minha intimidade. Eu ouço e calo. E mastigo como posso a infelicidade que delas se desprende.
Ontem voltamos a cruzar-nos os três. E no silêncio que se seguiu ao "Bom dia", naqueles instantes em que voltamos a fechar-nos sobre nós próprios, ela falou..." Amor, a tua mãe ligou ontem."
E eu, que quase todos os dias os ouço, lá puxei dos meus dotes artísticos e fingi o melhor que pude que, afinal, lhes mastigava a felicidade.
Um destes dias ainda vou lá a casa.